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Obituário: Domingos Carneiro

Este, para mim, não é um texto fácil de redigir, quando em período de confinação decorre o funeral do meu amigo Domingos Carneiro. Não se trata de um tributo, de uma homenagem, mas antes o testemunho de um convívio, ainda que breve, plenamente vivido e proporcionador de uma profunda amizade. Não é fácil escrever sobre um Amigo que parte de uma forma inesperada apesar dos seus, já 80 anos, mas com a personalidade e vontade de concretizar objectivos, do Domingos Carneiro.

O nosso primeiro encontro foi na Assembleia Municipal, em 2009, aquando do regresso da CDU ao órgão deliberativo através da eleição do António José dos Santos. O Domingos, na bancada do PS, estava sentado ao lado do Edmundo Pires. Antes do início dos trabalhos verifiquei que conversavam sobre Fado. Sabendo eu do percurso autárquico do presidente da Junta de Freguesia do Reguengo Grande, aproveitei a oportunidade para lhe dar conhecimento de uma referência que era feita à freguesia no livro ‘A Origem do Fado’, de José Alberto Sardinha. Tratava-se de um ‘Verde Gaio’ de características particulares. Da conversa resultou a constatação de um percurso comum com origem nas Caldas da Rainha.

O Domingos era natural das Caldas, cidade onde desde finais do século XIX a minha família, de origem materna, se instalara; tratando-se do fado o tema, assim se justifica o Levy que consta da letra do ‘Fado das Caldas’. Da conversa resultou o convite para a visita ao Reguengo Grande, o empréstimo do livro e resultante empatia que constituíram a base para uma relação vivida na partilha de valores e experiências, e de projectos onde constava, também, o desenvolvimento económico e social do Reguengo Grande.

O Domingos era um homem de cultura, autodidata, mas conhecedor, tendo como paixão o teatro, que concretizou ao constituir um grupo amador, para o qual escreveu uma peça representada na associação em que foi um dos fundadores em 1966. “Sabes tive de ir a Lisboa por causa da palavra associação. Queriam saber o porquê da designação... foram coisas lá do governador civil, mas depois de umas horas de espera e da minha explicação, lá concordaram; ficou Associação de Cultura, Desporto e Recreativa do Reguengo Grande”, contou-me. Como eu o compreendia…

Mas é o Parque de Urbanização da Junta de Freguesia que expressa e identifica o projecto do autarca, em que de forma integrada encontramos a Administração, a Saúde, a Cultura e os valores etnográficos e museológicos identificadores do Reguengo Grande. Outros reconhecem o trabalho, basta aceder à Wikipédia para ler que “a freguesia conheceu um desenvolvimento sociocultural a cima da média de outras freguesias limítrofes... estação de correio, farmácia, médico, jardim de infância, cresce social.…”. Outra paixão, a caça, formou o ecologista e o defensor da natureza. Quando o processo autárquico de 2017, eu próprio verifiquei, como o Domingos conhecia a palmo o território desde as Cesaredas ao Casal Serrano e às Fontelas. Os problemas ambientais, o papel de importância que dava à água, à preservação do Rio Galvão, a localização e defesa dos elementos naturais que considerava identitários da freguesia e, particularmente, a situação do Planalto das Cesaredas.

No Verão de 2017, tinha um recado na minha caixa de correio. O Domingos queria falar comigo. Encontrámo-nos no ‘Zambujo’. “Era para te dizer que gostava de me candidatar na lista da CDU”. O homem que se sentava há minha frente já tinha feito 78 anos; na Lourinhã, a CDU será sempre identificada com os “perigosos comunistas”... Portanto, eu via que a sua integração na lista só lhe viria a trazer problemas... e foi isso mesmo que lhe disse. Insistiu: “se me aceitarem faço parte da vossa lista no Reguengo”.

Não tem cabimento neste espaço a avaliação da sua decisão e vontade; sempre a encarei como expressão da sua amizade, não se preocupando com as previsíveis consequências... conseguiu o melhor resultado de sempre da CDU, normalmente teria feito parte do executivo da Junta de Freguesia; mas, pela primeira vez desde 1976 no concelho da Lourinhã, o PS e PSD aliaram-se para impedir que o Domingos Carneiro fizesse parte do executivo. Politicamente foi a sua maior vitória. Não o entendeu assim e o seu estado de saúde refleti-o, não lhe permitiu a participação nas reuniões da Assembleia de Freguesia.

Afinal, um homem nascido nas Caldas da Rainha que optou pelo lugar nos Correios de Reguengo Grande, por ficar mais perto da sua terra natal e que na carreira impediu o encerramento do Posto de Correios da Moita dos Ferreiros, assumindo trabalhar em simultâneo nas duas freguesias, que fez o percurso de vida mesmo aquando do período militar ao serviço dos outros, tinha direito que em vida beneficiasse de um melhor reconhecimento. “O setor terciário tem na feira anual de 20 de Maio, um momento de grande significado económico e cultural” e isto foi conseguido, a partir de 1985, com o Domingos, como presidente de junta.

Significativamente o orago do Reguengo é São Domingos, fundador da ordem dos pregadores... o Domingos não era santo e como todos os humanos tinha defeitos, o seu principal defeito era ser teimoso - o que nele se manifestou como qualidade. Sem a teimosia e a vontade de construir a obra não estaria feita e ele, no entanto, pensava que a sua participação “não estava concluída”.

José Levy Soeiro