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A ‘Artesã da Caridade!’

No entardecer da vida seremos julgados pelo amor!”. Recordo muitas vezes esta frase de São João da Cruz pela forma acutilante como traduz o mandamento novo de Jesus: «Amai-vos uns aos outros como eu vos amei.» (Jo 13, 34; 15, 12) Em Jesus amar é novidade permanente na sua concretização em cada tempo e em cada circunstância. Podemos até dizer que quem ama à maneira de Jesus como que não envelhece, porque vive já no horizonte da eternidade. Dito assim pode até parecer uma utopia, algo que não tem lugar, na correria desenfreada que preenche o nosso quotidiano. Mas a verdade é que o Evangelho é uma boa notícia, o anúncio de que a vida se ganha quando se faz dela um dom, e que apesar das limitações, fragilidades e medos é possível com a Graça de Deus, oferecida gratuitamente em Jesus, descobrir a nossa vocação última que é o Amor. Amar é a substância essencial da existência. Amar é viver! 

São Paulo no belíssimo hino à Caridade (a maneira de Deus amar) do capítulo 13 da 1 Carta aos Coríntios, afirma com veemência que podemos fazer as coisas mais extraordinárias, mas se estas não forem dimensionadas pelo Amor de Deus aprendido em Jesus, tudo ficará sempre incompleto e acabará por passar com a poeira dos dias. Fazer da nossa existência terrena uma aprendizagem do Amor, é uma tarefa que começa e se renova todos os dias.

A nossa vida é enriquecida quando encontramos pessoas onde esta sabedoria do Amor é manifesta nas suas obras e na forma como se relacionam com os outros. Nestes dias uma grande amiga minha, que tive a graça de conhecer mais de perto desde que tomei posse como Pároco da Paróquia da Marteleira há 12 anos, partiu para a Casa do Pai depois de uma vida intensa de dedicação aos seus e aos da sua terra quase até aos últimos instantes da sua peregrinação terrena. A Dona Júlia, assim conhecida por quase todos, de uma forma discreta mas prodigiosa, sempre soube estar atenta às necessidades dos outros. Nela era palpável o Amor que Jesus nos exorta a viver, para conhecermos desde já as maravilhas da eternidade prometida.

A sua extraordinária capacidade de trabalho e visão para os negócios permitiu-lhe, juntamente com os seus irmãos, construir o maior grupo português do sector avícola e um dos maiores da Europa. Mas para ela o sucesso pessoal teria pouca importância se não lhe permitisse fazer bem aos outros. O Senhor Patriarca, Dom Rui Valério, que presidiu às suas exéquias, apelidou-a de forma muito apropriada de ‘Artesã da Caridade’. A sua vida foi marcada pela urgência de atender às necessidades de todos e de como poderia contribuir para o bem da sua comunidade. Os seus irmãos, a quem sempre se manteve unida, sempre a apoiaram nesse cuidado constante pela acção social na comunidade e junto de quem necessitasse, cuja expressão mais visível é a edificação do Lar da Santa Casa da Misericórdia da Marteleira, que ela cuidava com um zelo ímpar e exemplar.

Ao longo da sua vida nunca quis protagonismos, nem buscava reconhecimento dos outros, porque para ela a maior recompensa era ver que os seus trabalhos valorizavam a vida dos outros. A prioridade do bem dos seus, do cuidado pela sua família e amigos, nunca a impediram de querer estar disponível para quem precisasse. A sua simplicidade autêntica, de quem nunca se julgava superior, impressionava e permitia que todos soubessem que podiam contar com ela. Nestes últimos tempos a sua maior preocupação era saber que ainda muito havia para fazer e as suas forças já não eram as mesmas, mas mesmo assim nunca baixou os braços.

A sua fé em Jesus e a devoção a Maria davam-lhe a densidade fundamental para saber enfrentar os muitos combates e desafios da sua vida. Não me recordo de a ver lamentar-se ou, pelo menos, a fazer dos problemas e dificuldades, desculpas para não fazer ou desistir. Se algo estava mal ou não ia pelo caminho do bem, procurava encontrar as melhores formas de corrigir e contribuir para se encontrar as soluções possíveis. A Dona Júlia tinha uma sã teimosia por fazer o bem.

Acredito que, agora no céu, não deve ficar muito satisfeita por eu lhe dedicar estas linhas (como referi nunca gostou de protagonismos!), mas escrevo-as porque é justo fazê-lo, e faz-nos bem ser agradecidos a quem tanto bem nos fez com o exemplo e a beleza da sua vida! Obrigada, Dona Júlia!

Pe. Ricardo Franco
Edição 1392 - 6 de Junho de 2025